30.9.04

As mãos

As mãos não acreditam no sentir, como se a pele fosse um jogo do faz de conta. Tu dormes quieta ao meu lado, aonde a paz do meu coração te adormeceu. Há um sentir dormente que desperta na manhã e a isso não chamo amor. Tu não te importas, o teu sorriso diz quase tudo, mas o quente da tua mão que sossega o lábio ainda vibrante da palavra anterior, ainda diz mais. Gosto das mãos que falam; que pedem com a palma estendida qual báu aberto a espera da entrega do tesouro; das que oferecem com os dedos esticados como se nos procurassem; das
que acariciam sem pressionar com a lentidão das coisas que não têm importância; das que se entrelaçam numa união mais forte que um cadeado de chave atirada ao vento. As tuas, falam docemente pela manhã e os teus olhos são só uma paisagem. As mãos brincam, são crianças risonhas num parque infantil saltando de diversão em diversão; são exploradoras tenazes que desbravam a selva; são jardineiras de um jardim colorido como os teus olhos. As mãos beijam-se fazendo cornucópias e um bailado moderno no ar. Estão dadas, longamente oferecidas à troca de prazer. Nas tuas mãos um abraço final principia.

um verão cheio de ti

foi um verão cheio de ti. um verão cheio de luz nos teus olhos. cheio de conversas que imitavam palavras escritas. foram cartas escondidas em silêncios desbravados numa praia. as rochas que saltamos, os pés que molhamos cresciam como memórias que não morriam. foram grãos de areia contados entre o indicador e o polegar, a ampulheta do tempo a imitar o bater do coração instalado nos segundos do verdadeiro tempo. foram longos os passeios que destruiam a tarde, que subjugavam o pôr-do-sol até nos perdermos na noite. foi o orvalho que tombava nos teus olhos de riso, o humor da minha alma patética como um elogio terno. foram de novo as palavras, agora sussuradas aonde dormia o silêncio da noite. foi a boca no ouvido a escrever segredos nas orelhas, adornos ainda mais reluzentes que brincos de prata na ternura da aurora. foram textos de intimidade no diário de uma só noite. foi de novo o sol, foram de novo dias como outros dias, como os dias que se seguiram. foi de novo a praia, o sol que queimava o teu corpo cada vez mais queimado, foram os olhares que regressavam em vagas de timidez. foram os toques na pele as feridas que ardiam depois das despedidas. foram os momentos em que ficava sozinho, a escrever, a escrever-te cartas imaginadas que se perdiam nos sonhos e não regressavam. foram as histórias embriagadas no final da tarde, foi essa tarde que mais uma vez se perdeu na noite, nessa noite que na praia, junto ao mar, te abracei o tempo todo que ousaste permitir. foi uma noite toda embalada nos meus braços, os segredos eram silêncios transmitidos boca a boca, as palavras saliva enredada no céu estrelado da boca. foram palavras estrangeiras trocadas no dicionário dos dedos, traduções de dialectos na brincadeira de duas línguas. foram noites cada vez mais silenciosas vividas na câmara escura dos olhos. trancados nas paredes finas de pálpebras, falavamos com as mãos nos cadernos escuros do corpos. foram noites de textos longos que só falavam de prazer. foram prazeres que foram repetidos no final de noites, no final dos dias, e dias seguidos, em dias consecutivos, no próprio dia as vezes que a alma queria, e o corpo lá ia e vinha cada vez mais escrito de memórias que não iriam querer morrer. foi a noite que choveu, qual diluvio que te levasse, qual chuva que te molhava os olhos de dor, que te escondia o sorriso num abraço dado na alma. foi a chuva que te levava, que extinguia o verão. foi a chuva nos meus olhos quando te vi partir, por detrás de um vidro que te levava, pingado de dor que escorregava por esse mesmo vidro que te levava cada vez mais longe, cada vez mais longe, cada vez mais longe...

29.9.04

a chuva...

"(...) A chuva molhava meu rosto gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha já eu percorrera
Meu choro de moça perdida gritava à cidade
Que o fogo do amor sob a chuva em instantes morrera...
A chuva ouviu e calou meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro trazendo a saudade
E eis que ela bate no vidro, trazendo a saudade..."

...

Voltada para o céu, tudo o que sinto em volta é vago. Só as ideias de nós prevalecem e os dados não jogam mais nas casas certas.Aqui estou, sem fôlego nem razão só de te lembrar e ao teu sorriso que faz tremer o céu. Os cabelos fogem-me ao vento e a razão também.
Voltada para o céu, de queixo erguido para o vento, o mar tão longe que não sei, sonho. O tempo é mesmo o inimigo, as tréguas que podia dar ecoam-me na saudade e suponho, talvez nada me faça parar.Voltada para a Lua, idolatro a dor que trago no peito cantando-a.
Eis que me lembro de ti.
No meio do Inverno, a cidade que vejo silencia e eu páro, "dizer que te amo é como uma cabeça de alfinete no Universo", dos meus olhos húmidos saem pautas de sonhos e só a tua existência me representa a realidade.
Já não há dores nem demoras que me afastem do meu ninho.

28.9.04

poema

.
..
...
"SÓ"
*
Acordo com a noite que me gela o coração,
Respiro a medo a verdade que paira no ar
Uma sombra de um passado balança no chão,
Queria ainda estar viva, mas já não sei sonhar
Acendo a luz e pego no meu livro de saudade,
Escrevo sonhos que não tenho e memórias de algo mais
Escrevo lágrimas que me caem no meio da sanidade,
Da coragem que não tenho em sítios tão desiguais
Acompanhada pela dor a que chamo solidão,
Vou voando com a noite que me leva pela mão,
E no fundo já não sei se quero mesmo voltar...
Com o meu livro aberto na sua página mais triste,
Embalada pela música de algo que já não existe,
Perco-me pelo espaço e vou-me deixando acordar...
*

26.9.04

Teatro

Soube tocar-me num abraço sentido, num louco e apertado abraço. Soube pousar admiravelmente a longa e bela mão sobre o ombro. Acariciar as costas como se de um carinho se tratasse. Envolver-me em si com uma força enorme, grande como uma amizade. Soube poisar a cabeça sobre o meu outro ombro ciumento. Tocar-me num contacto terno o rosto seu no meu rosto inexpressivo. Soube beijar a face da forma única e afectuosa dos amantes. E tudo a fingir um acto de teatro...

25.9.04

Sobre a poesia

- Como descreverias o pôr do sol?
- Diria que o sol morria numa agonia cor-de laranja.
- E um dia de chuva e vento?
- Diria que o choro dos céus era maior nos teus olhos e que o teu sopro era como um beijo devastador.
- Sim, mas eu não sou para aqui chamada.
- Quem disse? Tu és a metáfora perfeita de qualquer poema.

21.9.04

o bilhete

Hoje descobri um bilhete que um dia estive quase para deixar no para-brisas de uma pessoa. Nestas alturas penso sempre se um gesto meu não poderia mudar várias vidas. Depois, quando penso que é responsabilidade a mais, deixo de pensar no assunto.

Muitos serão os que te cortejam
Alguns, não terão essa coragem
Repararão quase todos na tua beleza
Instantaneamente eles, e elas: com inveja
Ah! e eu. Eu covarde, olhando-te à margem

Jamais dizemos palavras desnecessárias
Outros dias são os sorrisos que engolimos
As coisas que fazemos e não: tão térreas
Onde eu queria um céu repleto de mimos

#1

Morre nos meus braços. Não. Há coisas que nem a poesia deve consentir. Adormece.

19.9.04

O farol

Conheci-te numa noite que dura até hoje. Enrolei-me nas amêndoas dos teus olhos e tarde demais consegui perceber a artimanha da sua cor. A camisa de forças do teu corpo, uma metáfora que ainda faz sentido. Um rumo que sempre desmenti com a falsidade que sabes que eu sei impor. É nesta deriva louca que tu apareces, um farol do passado a iluminar trajectos impossíveis.

16.9.04

Olhares

Os teus olhos são de seda, o fio pegajoso de uma teia que me emaranha as palavras. Fica um silêncio, uma viagem para esse poço fundo e negro dos teus olhos.

14.9.04

Desculpas

Aonde tu foste, eu já lá estive. Lá ao fundo onde as palavras custam a sair, aonde as palavras roçam nas paredes de um mal estar suave mas persistente. Eu já lá tinha estado e conhecia a paisagem. Deixei-te demorar um tempo que te pareceu demasiado longo, com a tristeza a arrepiar-te a pele como se um vento fino te percoresse sem pudor a tez desnuda. Tu aflita por encontrares as palavras que enxaguassem a dor húmida nos meus olhos. Mas eu era um poço demasiado fundo onde o eco dos teus desejos não podia atingir. Mas eu já lá tinha estado, nesse local de feridas em que te encontravas agora, nesse local árido e sem esperança. Parecias perder as forças, branca e quase vazia, quando te dei a mão, mesmo que nunca tivesses encontrado as palavras certas para o termo desculpa.

12.9.04

a armadilha das palavras

este blog é estritamente literário e sem periodicidade garantida

10.9.04

As palavras

há uma urgência de sentir que as palavras não nos atraiçoam e não ficam presas no labirinto neuronal do esquecimento.as palavras fazem doer, às vezes quando as dizemos, tantas outras vezes quando guardámos seu som nos nós estreitos que embaraçam a voz. as palavras não posso conter