29.10.04

Levem-me daqui os sonhos que perdi num dia igual, passem a mão no meu rosto e sequem as minhas lágrimas. Peguem-me na mão e vejam nos meus olhos o que ninguém vê, ouçam o lamento que arrasto sem intenção. Ninguém o faz.
Quem me dera um pouco de paz, quem me dera a noite de vez. O silêncio do vazio ecoa-me nos ouvidos. A mágoa que quis esquecer entra de novo no meu peito e ninguém conhece a minha dor. Não tenho força, nem as lágrimas que perco no final de cada dia (como dói ser eu...) me lavam a alma (e como dói ninguém saber...).
Beijem-me os dias de vez, abracem-me os gritos que tento soltar em vão. Já não sei voar, não pertenço aqui, não sei que reconforto ainda me prende o coração. Queria gritar a distância entre mim mas a minha voz mantém-se ainda no meio da minha solidão.
Não há ninguém que me responda? Ninguém que me solte de vez as palavras nas horas que sempre quis ouvir... se alguém soubesse.
E eu não sei como vou ter de me manter desperta, o meu pedido de ajuda ainda a ecoar-me no peito...
Levem-me de vez para onde posso ser feliz, deixem-me ser só sem que ninguém me interrompa. Parem o Mundo que eu quero descer...

26.10.04

Os teus dias

Quando te conheci o sol ainda era este de todos os dias. No dia seguinte, no dia seguinte a ter-te conhecido, o sol era o mesmo. E já não era. Sobrevoava as noites que pareciam sempre as mesmas, e depois... depois já não eram. E era a música que sempre tocava no meu leitor, a música que, por acaso, ouvimos inteira à porta de tua casa. No dia seguinte, nessa manhã de Primavera mas de chuva, a música que era a mesma, também já não era. E foi assim com muitas coisas, durante muitos mais dias com muitas outras coisas. É, de repente, já nada era o mesmo. Já não era só a Primavera que se tinha transformado em Verão. Eras tu, sim tu, já nem tu eras a mesma. Primeiro bonita por fora, com olhos verdes infinitos como o meu mar à porta de casa. E depois, tão rapidamente, vindo de uma discussão por tão pouco, uma discussão por nada, por qualquer coisa tão insignificante como a tua beleza. Já não eras tu. Parecia que te tinhas virado do avesso, que o teu interior se tinha revolvido e saído para fora a meio de uma qualquer palavra insignificante como já não te dizer que te amo. De repente, sim tão rapidamente como uma folha madura cai de uma árvore, já era um Outono repleto de uma nostalgia que embalava os dias que continuavam todos na mesma, todos tão iguais.

25.10.04

Agarra a minha mão sem vermos o que fica para trás, abraça-me os dias em que me dói a saudade de mim. Anseio a tua voz, o olhar que diriges ao céu para onde queres voar, a tua pele cujo toque ainda me arde no peito. Eu não me esqueci de ti. Não me esqueci de ti, e se hoje me perco ainda à volta dos restos de nós é pela agonia que ainda me convém no final de cada dia, de cada ontem que ainda me marca o peito. Todos os dias me sobrevivo e às noites que me fazem morrer, a todas as horas cada lágrima guardada que me escorre pela alma se esconde do recomeço que adivinha. "És tão bonita por dentro", disseste tu, e não sabes que as tuas palavras são para mim a prece a seguir?, se eu ao menos soubesse porque mais ninguém as ouve...
Só tu, sempre tu, por isso peço-te mais uma vez, leva-me a voar contigo que ainda o fazes, pega-me na alma e não me deixes cair, canta-me os dias ao ouvido como eles podiam ser; não sabes nada mas podes ensinar-me tanto, não percebes a dor com que me acabo mas a tua luz serve por qualquer hora que me possas dar.

Os lábios

Eras tu que me guiavas pelo estreito e sinuoso mapa do teu corpo. Os lábios de algodão mordiscavam ordens que eu a gosto cumpria. Ferias-me a alma com a cor verde dos teus olhos. Não era o quanto eu te amava que questionavas, era o amor que ainda viria que nos fazia sofrer. O amor que viria embrulhado no coração da alma, o amor que fariámos aproveitando a ternura dos nossos corpo entrelaçados. Tudo podia acontecer naquele momento. Os teus olhos verdes e cristalinos como uma paisagem grandiosa que eu tentava perceber, os meus olhos persseguiam a tua mente pelo canal aberto na iris escura, expandida na aurora de um dia frio de sol. E quanto mais perto dos teus olhos, quanto mais perto da tua vida, quase tão perto do teu verdadeiro ser, quanto mais perto estava de te sentir, mais sentia o teu corpo esfriar. E se não era o teu corpo que esfriava, era o frio que se instalava entre os lençois, entre os nossos corpos que se afastavam. Tudo tão subtil como o prazer fugaz do teus lábios mordiscados em dor. Estivemos pertos do amor, digo-te eu, e não foram os nossos corpos que fugiram. Ficou tudo no silêncio dos teus lábios de algodão.

22.10.04

Os olhos

Os olhos? Os olhos têm pedrinhas lá dentro... Sáfiras brilhantes. São pequenos pedaços de magia quando brilham nas primeiras gotas da aurora. Choveu durante a noite, dizes tu com o desencanto de um sentir que ecoa nas paredes que preferimos desertas. O dia é como os outros dias em que o sol nos compromete, a chuva debita de mansinho uma melodia no vidro. Desenha quadros do Pollock que são efémeros e prateados, uma filigrana de mar que serpenteia em unissono com a minha preguiça. Tu abraças-me com os dedos, e vemos um filme escondido no silêncio perdido do olhar que se prolonga até a pele doer. O teu corpo é quente e frio o dia que nasce, frios os passos apressados das pessoas que se desviam da chuva que nos abrilhanta a manhã com um espectáculo na nossa janela. Não dizemos uma palavra, comemos os vocábulos nos beijos e as bocas saciadas são um jardim de flores murchas. Não sei se é do sono de uma noite incompleta de descanso, ou dos teus olhos... os teus olhos de sáfiras brilhantes não são para estes dias.

21.10.04

Não quero perder um só momento mas esquecer seria tudo o que preciso, não quero a ausência de ti mas ser só é sempre tudo o que me resta, não quero percorrer mais olhares para em meu redor só ter o teu.
Hoje volta o silêncio à minha noite, regressa o lamento espalhado por tudo o que é pétalas de nós. Restos de mim. Quase me tocam as memórias do que já não vejo, o que quase me perturba roça-me a pele, se ao menos eu ainda pudesse voar e as horas não fossem tão reles (se o vazio é tudo o que me enche...).
Eu quero o teu toque, quero a tua voz de luz do dia, quero a monotonia das noites, a minha luz, a tua luz tão comum como eu não sou.
Quero tapar os meus dias com os contornos da tua face, com os jeitos do teu sorriso. Com qualquer coisa que me devolva o eu que sempre quis ter a rotina de ser - quero ser contigo.
Hoje, porém, volta o silêncio à minha noite, e eu não ouso gritar alto o suficiente para te ouvir.

A boca

A solidão devasta-nos a alma. O silêncio perfura as bocas, mas delas só sai um oco inaudível. O lábio funde-se no lábio, uma porta estanque do teu sentir. Do meu também. Dizes que não queres viver na cidade que eu te escancarei como o amplo deserto das minhas riquezas. Eu aceito, num silêncio resignado que te circunda, que te abraça, envolve, mas com força, com força desmesurada até sentir o teu desconforto. A perversão de uma maldade sem a forma, com a crueza das pessoas maltratadas, criança mimada que resignada amua, mas sem mostrar a mágoa que lhe acinzenta o sorriso. Despeço-me em lágrimas, não, volto atrás e seco as lágrimas que ainda não tinham saído, enxaguo a alma. Sento-me de novo, e digo: repete. Não, não repitas. Eu oiço bem, olho nos teus olhos e oiço o teu coraçao falar da mágoa que te vai por dentro, e dói, eu sei que dói. É a mim que mais dói. Mas não somos todos vitimas do destino? Baixas os olhos como se não quisesses falar, sabes que eu te leio, um livro onde salto parágrafos que não compreendo, onde vejo texto aonde é afinal é paisagem baça e descorada de coisas que nem tu percebes. Não é fácil, escondo-me na boca de onde as palavras não saiem. Um esconderijo onde brinco sempre. Nada é certo, nada é por certo errado. Há um corropio de vocábulos a circular na cabeça, uma leve corrente de ar que rodopia, e rodopia. Eu sei aonde vai dar, o vento, o vento que sopra nos campos fazendo vendavais de palavras que deviam ser encarceradas, em palavras temperadas no acre da boca com paladar a mágoa. Não, não queremos isso pois não? Amaino as palavras iradas da cabeça, e dou-te a mão. A simples mão de amigo que tu ainda não compreendes. Vais compreender assim saiam as palavras correctas, as que desvendam o mistério, que percorrem os teus olhos de mar até as areias movediças do meu sentir. Eu ainda guardo o teu número.

20.10.04

Hora absurda

(...)
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
*
Alquém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
*
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
*
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - Como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
*
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...
*
(...)
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
*
Fernando Pessoa

19.10.04

Chove...

(sem título)
*
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
*
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
*
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
*
Fernando Pessoa

18.10.04

...

Quero viver assim, só como a palavra guardada no vento da noite. Tu sempre lá, a minha dor sempre à parte e às vezes passo a porta que me leva ao que é real; os pedaços de uma vida que me espera à chuva, fragmentos na melancolia dos dias.
Quero soprar no papel em que escrevo e mandar embora as palavras rasgadas, ler só nos teus olhos o caminho que se segue depois. As horas caem-me no esquecimento, por enquanto, o tempo já não está na minha mão.
Quero viver assim, só como uma palavra no vento da noite, de onde tu me puxas todos os dias para sonhar mais uma realidade.

15.10.04

...

O dia é claro, sinónimo de igual e como queria que fosse outro de novo.
Perdi os sonhos, sinto falta da minha luz, até das palavras que me marcam a dor e o meu lamento, ninguém o ouve. O Mundo entra-me agora pela alma e o ar que respiro não a lava de tudo o que me cai no peito.
Não sou só, quero voltar a sonhar enquanto vivo e que os dias voltem a ser mais do que esperados...

A cor da alma

Como gostei muita da ideia do "pegar-me na alma" do post anterior, resolvi ir buscar este aos meus arquivos... para continuarmos nas almas...

Agarrei um fio de prata de um raio de luar e fiz com ele um gancho brilhante para te prender o cabelo que se soltava no vento da noite. A chuva de Novembro gotejava umas orquídeas amarelas que te pintavam as sobrancelhas. Sempre me entreguei aos amores mais com a alma do que com o corpo, ao contrário da expressão popular. É uma postura diferente, daquelas que nem vem no Kamasutra. Estudei a arte de amar desde Ovídio até Stendhal e ainda folheei alguns contemporâneos. De nada serve o saber sem a consumação do sentir. Dei-te a mão sob um pretexto falso, numa rua que descia até ao mar numa calçada de paralelepípedos escorregadios, com tufos de musgo verde aonde se acumulava o orvalho da noite. Há qualquer coisa no toque da pele quase intangível. Uma linguagem que eu tento descodificar, uma química de compatibilidade. Há qualquer coisa que vibra no corpo quando tocamos a primeira vez em alguém. É preciso estar atento, parar todos os sentido e ficar à escuta com a concentração que as grandes coisas necessitam. A minha mão percorreu a tua como uma leitura sensorial e a vibração da tua pele sob a minha traçou uma paisagem azul de compatibilidade. Não me perguntes o que é isso. Acontece ser assim. A alma conta-nos histórias se estivermos dispostos a ouvi-la. A minha alma de pistachio desejosa de te conhecer gosta da tua paisagem azul que o teu contacto quente desenha na pele como uma pirogravura faz na madeira ressequida. Não me perguntes porque que a minha alma é verde e a tua azul. Não percebo muito de almas e isto de lhe dar cores é uma ilusão, até posso sofrer de um daltonismo que pinta mal as almas que sinto. No fim da rua há um bar sobranceiro à praia para onde nos dirigimos com o vagar de quem já tem tudo dito. O teu cabelo molhado pingava umas gotas de chuva fotogénicas na tua face fria. A minha mão na pele do teu rosto apagou a chuva de Novembro com o meu toque quente. És tão bonita como a alma.

14.10.04

...

Espera por mim, um dia destes, quando quiseres ir além do que pensas que existe. Sopra-me a vida de novo, atira-me um sonho qualquer, navega comigo outra vez enquanto esperamos o caminho certo.
Pega-me na dor e vamos ver o fim dos dias, o abrir das estrelas, o cair do teu sorriso à saída do pôr-do-sol. Vamos voltar a ser nós, a decorar a mesma Lua, a sonhar ao mesmo céu, com pressa de tudo o que possa acontecer.
Espera por mim, um dia destes, quando quiseres pegar-me na alma e levá-la a um final feliz qualquer.

13.10.04

...

Perdeu-se o tempo que fomos, fiquei sem a calma que era o teu toque. O ar da noite morre agora no que já não significa, o tempo foi demais para mim e também me perdi, já só me segredo distâncias que percorro à beira-mar.
A minha sombra preenche todo o meu espaço no lugar do teu sorriso. Do teu sorriso... Se eu voltasse a saber como sonhar... Se eu voltasse a saber como não ser só.
Qualquer sonho me servia, qualquer noite, qualquer. Qualquer voz que me tirasse deste dia tão claro. Tira-me as palavras de vez... Tira-me qualquer coisa que me devolva o ser.
Ignoro agora o teu rosto que escondo, desfolho segredos à beira da dor que me enche o peito e prefiro não escolher mais quem sou. Morri nos teus braços esta noite, e o tempo não me perdoa as mágoas que me fiz sentir...
Morri nos teus braços, esta noite.

12.10.04

Dá-me a tua liberdade

Tinha no ventre uma emoção que a fazia julgar estar grávida. A emoção transformou-se em desejo e a barriga cresceu mesmo. Não engordara. Dormia pouco, às vezes exagerava na bebida. Bebia muito menos do que eu. Dançava em casa, com os estores da sala levantados para que os vizinhos nos vissem. Danças eróticas. Nunca ousou despir-se enquanto dançava. Não pelo pudor que sentia com os vizinhos a olhar. Mas por mim. Tinha de apagar sempre a luz sempre que oferecia o seu corpo nu. Tinha nascido no dia 25 de Abril de 1974 e achava que a liberdade lhe pertencia. Não fosse o pudor atravessar-lhe o pensamento. Coloquei estores até na cozinha e na pequena janela da sala de banho. Nas noites quentes de Verão recolhiamo-nos na penumbra de minha casa, descarregávamos os corpos do peso da roupa, faziámos piqueniques na sala e embebedavamo-nos sem querer. Oferecia-te carregamentos de pétalas que a minha amiga florista me arranjava em troca de alguns favores inconfessáveis. Um dia adormeci-te um botão de rosa no ventre, uma semente para a tua imaginação.

11.10.04

Novembro

para a Bébé

Não sei porque chamo janelas aos teus olhos e portas ao teu sexo, não sei. O livro que te escrevo é uma mansão com imensos quartos vazios onde as palavras se vão deitar. Escrevo a nossa história em textos que tu rescreves por achares que não te compreendo. Dizes que penso saber tudo mas que estou muito longe da realidade que dizes também não conhecer. Eu só quero pegar no barro lamacento das nossas vidas e ser o artífice que o transforma. Não sei exactamente em quê nem em que sentido. A textura das palavras não tem de ser um caleidoscópio, toda a acção não tem necessariamente de ser um filme, até porque há momentos que não deviam ter banda sonora como o nosso primeiro beijo entre as buzinas estridentes de dois camiões cisterna, comentas tu. Foi mais marcante assim, rematas. Eu não ligo, e continuo a edificar o palácio do teu corpo com as suas janelas negras, o telhado amarelo com telhas curtas como erva seca e amarela espetada ao sabor do vento, as paredes caiadas de um branco luminoso e acabo com a descrição das portas trancadas. Tu riscas a última palavra que substituis pelo termo seladas. Eu olho para ti com ar incrédulo mas tu sorris e abanas a cabeça confirmando o que escreveras. As palavras continuam a chegar como convidados de uma grande festa que nós, anfitriões da mansão do nosso livro, recebemos cordialmente. Expulsas sempre os meus convidados que achas indesejáveis com um ar arrogante de dona de casa zelosa. Às vezes falo de ti, embora tu nunca te refiras a mim de nenhuma maneira. A história é tua e já te expões o suficiente, dizes tu. Gosto dos teus beijos misturados no vapor da madeira e do álcool do vinho do Porto. Descrevo o momento em que te disse amo-te pela primeira vez na minha vida de uma forma totalmente fantasiada. Tu riscas tudo com uma violência que até fura o papel. Encostas-te à janela e ficas a olhar para um ponto de fuga que eu não consigo perspectivar. Temos estes momentos em que andamos perdidos até eu te encontrar. Este momento até é daqueles que têm banda sonora, mas eu desligo a aparelhagem. O silêncio pronuncia a discórdia. Sabes que eu o fiz de propósito, dizem-me os teus olhos reflectidos no vidro. Sempre soubemos utilizar os espelhos, uma recordação que o teu sorriso mimetiza o instante em que os teus olhos se enquadraram nos meus no dia que nos conhecemos. O silêncio perdura e só o ruído do meu gesto de mudar de página irrompe como uma trégua. Rescrevo o momento riscado. Desta vez conto como tudo foi: a despedida à porta de tua casa; o momento em que me esquivei a dizer algo; a tua insistência para eu dizer o que me tinha apetecido dizer; eu a dizer que não era nada, que era uma asneira; descrevo a maneira como desci as escadas, a raiva que demonstrei contra as inocentes flores. Conto os meus pensamentos enquanto acendia um cigarro ainda à porta de tua casa, descrevo a minha covardia toda sem a menor piedade de mim próprio. Descrevo o momento em que me abraçaste por trás com o teu corpo quente colado ao meu, as lágrimas que escorreram mostrando o desconforto que sentia comigo mesmo, e o momento em que me rodaste para te enfrentar, contigo a lavar-me o rosto com os teus beijos fingindo serem toalhas. Faço uma pausa na escrita. Acendo um cigarro lavado no trago amargo do Porto por falta dos teus beijos. Vejo a nossa mansão do texto em ruínas após as tuas demolições violentas, debruço-me sobre o ultimo projecto que as minhas palavras anunciavam. A recordação do momento deixa-me fechado num monólogo interior. Fecho os olhos nas palmas das mãos como se fizesse um cinema com o filme das recordações só para mim. Tu vens ter comigo, enrolas-te nas minhas costas debruçando o queixo sobre o meu ombro. Espreitas o momento vivido através da janela do tempo que as minhas palavras abrem. Guardas-me as mãos no cofre forte das tuas. Continua, pedes-me. Não consigo. Não sei porque me custa tanto abandonar-me a alguém, o mesmo se passa quando tenho de descrever o abandono. Tens medo, dizes-me roubando os pensamentos mais íntimos. É como se te entregasse a minha vida. Tu percebes, dominas-me e por isso tudo isto me custa como se me fosse perder a mim próprio. Tu percebes tudo, sempre percebeste. És esperta como o ar que tudo preenche. As tuas caricias incitam a segurança que sabes que me falta. Estás dentro dos meus receios como um bálsamo, libertando um perfume intenso de tranquilidade. O colete de forças do teu desejo domina-me. Despe-te pedes tu, libertando-me as mãos das algemas das tuas. Eu pego na caneta, na folha, e escavo no mais fundo da alma, as razões e sentimentos que me perturbavam, que me condicionavam naquele momento, no segundo anterior a dizer que te amava. Tu acaricias-me as costas, pele com pele debaixo da camisa. Massajas-me a alma com o unguento da segurança. Eu descrevo tudo. As palavras vêm de dentro como o tijolo e a argamassa da nossa mansão de texto. Pinto paredes, destruo paredes. Faço aberturas onde não as havia, janelas para a alma. Descrevo recantos que são passagens secretas para sítios grotescos, tão próximos dos pesadelos. Mostro-te os terraços que dão para o céu de sonhos, e jardins que são o paraíso reinventando. Sou mais do que uma alma despida, sou a pele e o osso das palavras. O sangue pulula no interstício das linhas, e tu bebes a sangria que derrete na avalanche dos parágrafos. Paro de escrever quando a tua mão acaricia o meu sexo e os teus lábios anunciam a ordem no lóbulo trémulo do ouvido. Chega. A minha alma soluça baixinho, a água presa na barragem das pálpebras prestes a galgar o dique. A mansão do texto é, agora, apenas um auto-retrato meu. Eu precisava de ter a certeza, agarrar os teus medos e mistura-los nos meus, e fazer disso a massa consistente que proteja a nossa mansão das agressões exteriores, tinha tanto medo de que não fosses capaz de o fazer e libertar-me também das minhas inseguranças. Escreves tu no final, como um grande plano de uma flor no nosso jardim de paisagens interiores. Os corpos deitam-se empurrados pela aragem do espirito, as portas da alma abertas fazendo a corrente de ar violento libertar o pólen do desejo, e as portas do corpo que deixaste arrombar quebrando o selo do lacre. Foi quando dissestes que me amavas e eu o repeti fazendo eco do meu amor sem esforço algum. Tu pegaste fogo à mansão do texto libertando-me do inferno das meus medos com o fogo do teu desejo. Agora tenho-te para sempre na memória, segredaste-me. Eu também.


...

Só mais um dia cinzento, um dia tão carregado de mágoas como o meu peito. Consulto um Deus qualquer em vão, ninguém me dá respostas e eu não tenho mais portas abertas para a minha dor.
Queria que alguém me soubesse dizer o que me aconteceu, para onde foram os meus dias perfeitos, o que aconteceu à minha vontade de sonhar, porque deixei de saber voar?
Queria acreditar em mim mas mesmo o meu ser é pesado demais para a minha existência, não há ninguém que me tire deste sítio, da minha sombra? Daqui só posso ver o céu e pedir à Lua que um dia olhe por ti,respirar custa-me como um aperto à dor e eu não sei se consigo, afinal, ser só.

8.10.04

...

O Sol que volta agora a incomodar-me, tudo me queima as expectativas e me deixa na dúvida, "pensar incomoda como andar à chuva", os animais, por vezes, são muito mais felizes.
Não sei por onde ando, e ainda que o meu pedido seja escasso gostava de o fazer ouvir ao mar, libertar-me e acabar a revelar tudo o que sinto: lamentar nunca mais, dar um pouco de paz às minhas lágrimas, esquecer um pouco a dor que me acompanha sempre, sair da minha sombra e, quem sabe, ser feliz...

6.10.04

...

Penso em ti, muitas vezes, mais do que penso em nós.
Sem saber como, és o que tenho de mais longe, dentro de mim nada se sabe e do céu não me vem nada que possa ouvir. Já não chove agora, tenho pena, a chuva sempre esteve do meu lado, acho que sempre esperei que um dia levasse de vez o meu lamento que agora só carrego aos poucos.
Já não sei nada.
Indistintamente ou não, és o abrigo das minhas incertezas, lamento de uma dor que não quero deixar de ouvir.
"O mais é nada."...

5.10.04

...

Por vezes, o mundo parece tão diferente do que é e nós acreditamos. Eu acredito. A minha escolha é fraca, a minha Lua nem sempre me acolhe e eu não recorro a ninguém. Se os meus olhos me mostrassem. Se eu soubesse viver aqui. Mas do céu só me descem angústias e eu não tenho desculpa.
Não sou só mas queria ser e não posso ficar sem a minha estrela. Queria perder a existência mas o teu ar alegra-me a dor. Os dias passam rápido demais (e quem me dera poder fazê-los parar...) mas devagar o suficiente para me custarem (quem me dera conseguir fazê-los passar mais rápido...).
E eu fico aqui,onde não páro de desejar um fim qualquer mas agarro-me à vida de tudo o que vejo, onde não deixo de querer ser só mas tu dizes-me tudo o que não quero deixar de ouvir.

4.10.04

A beleza das coisas

A beleza das coisas está profundamente gravada no colorido dos teus olhos.

A luz da vida quando nos incide sobre a pele, deita-se connosco, atravessa a razão, e vem pernoitar nos sonhos. Passeio sobre a água alisada pela maré que à minha frente sossobra. Ha uma luz azulada que faz reflexos na crista das ondas e anuncia a chegada da manhã. As gaivotas chegam, fazendo-me companhia, debicam frutos do mar onde uma onda deixou apenas umas gotas de saudade. Outras saudam-me com coreografias graciososas, como se dançassem para mim. Dá que pensar. As ondas marulham de mansinho, o som de um saxofone aparece enchendo de laranja a paisagem. O dia vai ser quente. Há um suspiro no ar que traz de volta o teu perfume. É uma guitarra a dedilhar melodias nos meus sentidos. Uma brincadeira de sonhos que se entrelaçam. Não escrevo palavras na areia mas as palavras ficam retidas nos sonhos e de lá não saiem. Ainda dá mais que pensar. Na estrada de pedra o meu rasto perde-se. O medo assalta-me. Sim, isso de já não me poderes seguir, de não poderes sonhar na mesma dimensão que eu sonho. Estendo-te uma passadeira de rosas brancas que só acaba aonde o mar se vai deitar. É uma estrada de fantasia onde podes perder o resto dos teus dias, como um convite para um passeio sem fim. Uma viagem pelo interior das coisas. É o que dá pensar em ti.

Por isso espreito pelos teus olhos.

3.10.04

...

Já não sei que sonhos me animam as noites, que manhãs me iluminam o céu. Descem-me nas janelas mágoas que devia perder, a chuva embala-me na minha sombra e eu não esqueço tudo o que sei. E devia.
Vou passando pelos dias de mãos dadas com não sei que Deus que me acolheu. O fantasma da minha dor fica no céu e não me deixa. Eu, já não sonho. Espreito pela nesga do cortinado as poças de água que me sobram da dor. À noite, tudo será melhor. A Lua continua a balançar-me o peito que traz preso na face, a minha voz não se cala.
"O vento da noite gira no céu e canta." O vento da noite gira no céu e canta. E é tudo.
Quem me dera ser só.

Nas mãos do tempo

Estendeste-me a mão com as cicatrizes do destino expostas na sua palma. Tu dizes não acreditar nisso. Eu também não. Recebo-a na concha quente que as minhas mãos formam. Como nos fomos conhecer, pergunto-te. Tu foges da palavra destino numa resposta longa e sem nexo. Para o acaso, para as coisas inexplicáveis que nos acontecem, utilizamos a palavra destino. Há coisas tão simples como nos cruzarmos por razões que não nos ligavam. E porque estamos juntos, perguntas tu. A tua outra mão, de novo, sobre as minhas que ainda guardavam a tua, adormecida no murmúrio do conforto das minhas. Dou uma resposta simples, sem me ferir na profundidade de intenções que as tuas palavras abriam. As respostas simples não te agradam, e a fuga das tuas mãos elegantes do permeio das minhas pronuncia um distaciamento que o meu silêncio agudiza. Desvias o teu olhar como um paragráfo de texto escondido no meu olhar. O tempo são reticências que se vão somando umas atrás das outras.

1.10.04

A voz

Eu podia ser a voz do teu corpo. Podia ser a palavra mar a sair dos teus olhos, a catarata de lágrimas que o teu sorriso de gozo acompanhava na sonoridade infantil das tuas gargalhadas. Podia ser a palavra terra da amostra de pele que me oferecias nos momentos que te desnudavas no pudor de uma luz entreaberta na cortina da manhã. Podia ser o astrónomo que desvendava o mapa cósmico dos teus sinais castanhos, o desenhador das constelações que marcavam o teu corpo. Era o meu dedo a dar-lhes voz, como quem indica um trajecto numa estrada para a aventura, com rotas pré-programadas que te guiavam ao prazer. Eu podia ser a voz que prolongava os teus suspiros abafados na noite quente que nós faziámos incendiar. Eu podia ser a palavra fogo que vinha do teu corpo, podia ser a labareda vermelha dos teus lábios mordicados. Era a língua que falava de palavras que vinham da almofada dos lábios. Era a língua que cruzava com uma palavra silenciosa que ficava escondida e presa no teu olhar, banhado na luz baça da noite que parecia não acabar. Eu queria ser a voz da tua voz, queria ser o verbo do amor que no silêncio da resposta te mantiveste fechada. Eu que fui voz de mim e do meu corpo num mês de Primavera tão parecido com o teu nome.
Sopro ao de leve as lembranças que me sobraram da beira da dor. Na sombra, e só aí, ninguém me acompanha nem ao lamento que arrasto à beira-mar. A minha estrela, que já não é minha (e como o foi em tantas noites...), já não me desce aos ouvidos e a Lua já não é o meu baloiço. Felizmente, o céu continua no meu destino.
Ninguém compreende.
Hoje, como em tantos outros dias, já não importa; pego nos meus cinco minutos de paz e descanso as minhas lágrimas. Sou eu, sou só eu, e eu não posso ficar só. Desesperadamente, as ondas parecem mares que elevam a distância do meu grito ao quadrado.
O horizonte que fito já ninguém olha, e a longitude entre mim, ninguém a vê.